sábado, 20 de março de 2010

Causos da Índia

Nos intervalos entre uma aula e outra, a Bárbara e eu dávamos umas escapadinhas pela cidade... parávamos sempre em algum cantinho, ora para tomar um suco de manga ou de romã, ora comer uma fruta, uma batatinha chips apimentadíssima (as duas salivando para experimentar comidinhas bizarras e não, não tivemos diarréia!) ...perseguíamos gulab jamuns por aí, mas lá no sul da Índia eles são mesmo menos frequentes do que no norte, parávamos na doceria Sri Krishna Sweets para comer rasmalai ou sonpapdis e... credo, a gente comia, não?... agora que eu estou vendo como a gente lambia os beiços...












Mas Coimbatore não é exatamente uma cidade turística, então a gente dividia o tempo vago entre caçar comidinhas diferentes, ir ao mercadinho comprar papel higiênico e água mineral e ir até a lan house. Íamos para lá e para cá arrastando as havaianas no chão empoeirado chic-chic-chic...E era  no meio do caminho que a gente encontrava pessoas, fatos e situações interessantes!

Um dia fomos telefonar na nossa cabininha STD-ISD preferida, que era na frente da casa de uma senhora aposentada, que era a dona, que vivia contando estórias sobre o passado dela (para cada uma de nós, ela contava uma coisa diferente: ah, ela me falou que era professora universitária.. ué, para mim falou que trabalhava em uma empresa de aviões, coisas assim...) enfim, a cabininha estar na frente da casa significava estar na frente do esgoto que passava na frente da casa. Isso não nos incomodava, mas nesta noite, tinham tantas baratas, tantas baratas, subindo no portão, correndo em cima do muro, em cima da porta da cabine, que ficamos as duas boquiabertas pensando se deveríamos arriscar, já que já era tarde e a tiazinha só iria abrir a cabine porque já nos conhecia, e era um horário bom para ligar, porque a diferença do fuso era de oito horas... Estávamos as duas ali avaliando o custo-benefício da coisa, e devíamos estar com uma cara tão esquisita, que um moço passou e gritou da moto: go, go, they won´t bite ! Ó! Que consolo, ainda bem que você avisou, né moço! Mas mesmo assim não fomos não....  uuuuiii, credo!

Além da tia da cabinha, tinha o tio da internet. Vimos lá a placa: internet - email, e subimos para fazer contato com o lado de cá. O moço estava dormindo com  os pés em cima da mesa. A gente: excuse me, sir? sir? SIR??? Gente o moço estava dormindo tão profundamente que quase caiu da cadeira com o susto! Nos outros dias a gente entrava lá, ia usando o computador e ele só acordava na hora de cobrar: Hello ladies, twenty rupies, wich country? married? A gente ficou até amiga do moço, que ele nos convidou para o almoço do Pongal - ah, deixe-me falar a respeito do Pongal!



É uma data muito festiva, comemorada no estado de Tamil Nadu, que é um estado predominantemente agrícola. É uma festa onde se agradece ao deus sol, Surya, às vacas e aos grãos, pela fartura da colheita. Marca também o início do verão e a ida do sol em direção ao norte. Mas é uma festa assim tipo o nosso Natal! Feriado de quinta a domingo, pessoas de roupas novas, sanzando para lá e para cá com mudas de plantas, ingredientes para o jantar e enfeitando as calçadas com os Rangolis, ou Kolams como eles dizem no sul, que são as mandalas na porta de casa:

As calçadas e as ruas são tingidas de um tom verde-amarelado, com um cheirinho que logo descobri: é uma tintura feita de cocô de vaca! Há também um costume de enfeitar a casa com mudas como se fosse uma casinha dos tempos rurais e de deixar o leite ferver dentro de um pote de barro, quando ele transborda, é sinal de fartura - voltando, então, o nosso amigo tiozinho da internet queria que fôssemos à casa dele para o equivalente à nossa ceia de Natal! Claro que agradecemos o convite... mas não fomos não...rs.. não queríamos incmodar, nem nos sentir como dois aliens na festa de Pongal deles...No dia seguinte, acho que ele tomou todas no jantar do Pongal, resolveu cobrar da gente o dobro do que costumava nos cobrar... Será que ele ficou bravo que não fomos? Aí ficamos de mal com o tiozinho da internet e achamos outra lan house. Paciência, ué! (A gente passava embaixo da loja dele e ele só ficava nos fitando lá de cima, todo ressabiado!)

E o dia do eclipse? Nossa, como se não bastasse o feriado do Pongal para suspender nossas aulas e aumentar o nosso tempo de perambulação por Coimbatore, ainda teve eclipse. O que que tem?


A cidade parou! Durante o eclipse, o comércio fechou, as pessoas se recolheram, não tivemos aula. Na secretaria da ARSHA e no hospital inteiro todos estavam quietinhos, com os computadores desligados, sem comer, sem beber, sem sair à luz do sol, enquanto o eclipse não acabasse. Depois fui ler que foi o eclipse mais longo do milênio - mas precisava deixar a gente sem aula e com fome? Precisava, claro. Estávamos na Índia e os indianos sempre tem uma razão especial  e milenar para atitudes comportamentais! Segundo os Vedas, não se deve fazer nada durante um eclipse porque o estado do organismo é alterado neste momento. Se observarmos a natureza, realmente, os pássaros, os cães, as vacas ficam meio confusos, não saber direito se está anoitecendo ou o quê. Então, tive que me conformar e obedeci às orientações. Não, não tinha ninguém, com um RX na mão para servir de filtro e olhar o fenômeno! Aliás todas as fotos deste post são minhas, exceto esta do eclipse - mesmo que eu tivesse o equipamento adequado eu não montaria um circo fotográfico no pátio do hospital, bem na hora em que estavam todos recolhidos por razões tão importantes!

Quando se é viajante e não turista, tudo isso é natural. Não há a menor necessidade de correr das baratas,de não desejar um Happy Pongal to you, sir só porque o feriado poderia atrapalhar as aulas, de ficar mau humorado por achar que essas coisas de eclipse são puro misticismo, de desviar das calçadas tingidas de cocô, de não ter paciência com a tiazinha da cabine telefônica, de não comer na rua... e de não se divertir muito com essas histórias ...

Sim, a gente só andava de chinelo nas calçadas de cocô e ficávamos com os pés imundos, ouvíamos pacientemente as estórias da tiazinha do telefone e ficamos até com dó de ter dado uma gelada no moço da internet! Sim, enfiamos o pé na sujeira, comemos na rua com a mão suja, dormimos num sari, fizemos xixi de cócoras, viajamos de trem, ficamos suadas e encardidas, demos de comer e fizemos reverência à vaquinha do hospital, frequentamos o templo, participamos dos pujas, recebemos tratamentos ayurvédicos meio bizarros e não muito confortáveis, comemos na rua...

e não tivemos micose, nem diarréia... só um pouco de saudade de casa... na última semana! E voltamos inteiras, com aquele algo mais no coração, que só quem viaja conhece... Ah, Índia queridaaaaa!!!!

Depois conto mais!

OM SHANTI!

TRAJETÓRIA PROFISSIONAL

Médica formada na Faculdade de Medicina do ABC em 1999. Fez residência em Pediatria na Escola Paulista de Medicina – UNIFESP até 2002.

Especializou-se em Homeopatia pela Escola Paulista de Homeopatia, atual ICEH, de 2003 a 2005.

Seu interesse em Ayurveda nasceu com o início das práticas de Yoga em 2002. Em 2007, fez o módulo I de formação em Yoga com Pedro Kupfer. Em 2008 concluiu a formação em Ayurveda na Clínica Dhanvantari em São Paulo, com Dr. Luiz Guilherme Corrêa Neto.

Na Índia, fez estágio em Ayurveda e Pregnancy & Baby Care na “School of Ayurveda & Panchakarma”, Kannur, Kerala, em Janeiro de 2009 e no Arya Vidya Peetam Trust, AVP Hospital, Coimbatore, em janeiro de 2010.

Atualmente trabalha na em seu consultório, atendendo a consultas de Pediatria e Puericultura, permeadas pela Homeopatia, pelo Ayurveda e pela sua bagagem de maternagem.

Escreve o blog PEDIATRIA INTEGRAL no Portal de maternidade ativa Vila Mamífera.

TODOS SOMOS UM